
Daiane dos Santos
Ginástica Artística
10/02/1983
•BIOGRAFIA
A brasileirinha pioneira que colocou o país no topo do mundo
Na primeira década dos anos 2000, o nome Daiane dos Santos se tornou sinônimo da ginástica brasileira. Com seu duplo twist carpado, ao som de “Brasileirinho”, a pequena notável, de apenas 1,47m de altura, colocou o país, definitivamente, no mapa das potências mundiais da modalidade.
“Daiane abriu portas para a ginástica no Brasil, elevando o país ao nível das melhores ginastas do mundo e provando que o Brasil também pode ser uma potência nesse esporte”, afirma a ucraniana Iryna IIyashenko, técnica da Seleção Brasileira de Ginástica Artística. “Daiane dos Santos era um fenômeno, com algumas qualidades físicas fora da curva. Ela tinha praticamente o dobro de potência física e explosão em comparação às demais atletas”, emenda a técnica, que acompanhou o desenvolvimento da ginasta na Seleção Brasileira Permanente, em Curitiba.
Gaúcha de Porto Alegre, Daiane foi uma criança hiperativa, dessas que sobem na mesa de centro da sala e se penduram nas cortinas. “Acho que todo ginasta tem meio isso, essa hiperatividade, inclusive os pais procuram a ginástica como uma estratégia de controle dessa energia, por conta desse combustível extra, de adrenalina que a gente tem. Eu era essa criança espoleta, que corre pra lá e pra cá, que subia na mesa, que subia nas cortinas”, conta. “Na escola eu era do mesmo jeito, abençoada assim, mas eu tirava boas notas. Quando a criança é hiperativa, ela vai ser hiperativa em todos os lugares que ela estiver, não só em casa. Ela tem uma energia que precisa ser gasta. Na escola, era mais difícil ficar sentada, mas eu sempre aprendi muito rápido e tirava boas notas. Eu falava bastante, era bem tagarela, brincava, corria demais. Eu estudei em escola onde não podia correr e era muito difícil pra mim controlar essa impulsividade”, lembra.
Segunda de uma família de cinco – quatro meninas e um menino, Daiane é filha dos funcionários públicos Magda e Moacir e viveu a primeira infância num conjunto habitacional, na zona sul de Porto Alegre. “Eu morei lá até os seis anos. A Cohab Cavalhada fica num lugar muito parecido com Paraisópolis, em São Paulo, uma região de comunidade entre bairros nobres”, compara. Por conta da violência, a família da atleta decidiu se mudar para um bairro mais tranquilo.
Estudando no Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) “Mané Garrincha”, que funciona no mesmo espaço de um centro de treinamento do governo do Estado do Rio Grande do Sul, a ginasta tinha aulas curriculares, pela manhã, e praticava atividades culturais e esportivas no contraturno. “Era uma escola híbrida, que tinha esporte e educação junto. É um polo muito parecido com o Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa de São Paulo, só que dentro dele tem uma escola. A estrutura é parecida com um CEU (Centro Educacional Unificado)”, detalha.
“A escola tinha ginástica artística, mas eu ainda não tinha idade para fazer. Eu fazia ginástica rítmica e era péssima! Tinha que ser muito flexível e eu não era, não tinha nem corpo. Foi muito gostoso, mas não era o meu esporte”, diverte-se.
Encontro de olhares
Numa tarde de 1984, quando saiu para brincar num parquinho, como sempre fazia, a pequena Daiane não poderia prever que, naquele dia, um encontro mudaria sua vida para sempre. A menina, que gostava de correr e brincar de pega-pega, estava pendurada num trepa-trepa, quando chamou a atenção da professora Cleusa de Paula. “Foi um encontro muito especial, muito orgânico, como acontece com muitas crianças no Brasil [...]. Foi um encontro de olhares de uma moça que sabia que poderia dar uma oportunidade para uma criança, ela me viu ali e me convidou. A gente tem muito isso no Brasil: a criança está brincando e o professor, que tem esse olhar apto, vê aquele talento bruto e dá oportunidade, isso aconteceu comigo. Através do olhar generoso dela, surgiu o convite para eu conhecer a ginástica”.
Fenômeno
Diferente da quase totalidade das ginastas, que começam no esporte aos quatro/cinco anos, Daiane já tinha 11 quando foi treinar na AACET (Associação dos Amigos do Centro Estadual de Treinamento). “Daiane dos Santos é um fenômeno porque ela contrariou todos requisitos básicos da ginástica, num primeiro momento, que estabelece que tem que se iniciar cedo, que tem que se desenvolver num clube com formação, que tem que ter uma carreira bem desenvolvida para depois você ter resultados e alcançar sucesso. Ela foi descoberta num parquinho, aos 11 anos de idade, e, em um ano, já estava competindo nacionalmente”, ressalta Luísa Parente, a primeira brasileira a participar de duas Olimpíadas, Seul-1988 e Barcelona-1992.
Daiane ficou um ano na AACET, de onde foi para o Grêmio Náutico União. Aos 13 anos, foi convocada para a Seleção Brasileira. “Eu treinei bastante e gostava muito. Eu queria muito aprender tudo rápido, até porque eu não tinha tempo a perder, já tinha perdido muito tempo. Eu sempre fui muito forte e explosiva e isso me ajudou a aprender as coisas muito rápido, mas também faltou um pouco mais desse refinamento técnico, principalmente no começo. Depois, ao longo da carreira, a gente foi melhorando essa questão”, detalha a ex-atleta.
De Porto Alegre para o mundo
Ao ser convocada para a Seleção Brasileira, a menina gaúcha teve a oportunidade de fazer sua primeira viagem internacional. “Eu fiquei muito feliz! Imagina: eu tinha 13 anos e fui para o Chile, disputar o Campeonato Sul-Americano Juvenil. Antes da ginástica, eu não tinha passado de Santa Catarina para ir para o Paraná, por exemplo.”, festeja.
Em 1999, Dai disputou os Jogos Pan-Americanos de Winnipeg. “Nessa época, eu já tinha entendido que eu queria ser uma ginasta. Quando voltei do Chile, eu entendi: cara, eu quero fazer isso na minha vida. Dos 13 anos para frente, eu já tinha uma noção maior de tudo o que a ginasta significava na minha vida. Quando vou para Winnipeg, vejo que ali eu estou num passo grandioso de ser uma das meninas que integravam a Seleção Brasileira Adulta, em tão pouco tempo”, revela.
No Canadá, ela teve a primeira oportunidade de vivenciar uma edição de Jogos. “Foi a primeira dose de Jogos que eu tive, participar desse grande evento foi incrível pela magnitude que ele tem, é o maior evento que a gente tem no nosso continente e eu poder ter sido escolhida, agora não mais como seleção juvenil, mas como seleção brasileira, foi incrível”, conclui a ginasta, que voltou ao Brasil com duas medalhas de bronze: uma no solo e outra por equipes. No mesmo ano, Daiane dos Santos fez sua estreia no Mundial de Tianjin, na China, onde o Brasil garantiu duas vagas para os Jogos Olímpicos, pela primeira vez.
Vacas magras
Praticada no nosso país desde os anos 1950, a ginástica artística brasileira, à época chamada ginástica olímpica, marcou presença em Olimpíadas, pela primeira vez, em Moscou-1980, com a carioca Cláudia Magalhães. Desde então, além das dificuldades intrínsecas à prática de uma modalidade tão exigente, os atletas tinham que superar outros obstáculos para competir, já que não havia apoio financeiro suficiente.
“Eu até tive alguns patrocinadores, mas muito simbólicos, nada assim de fazer você largar tudo o que está fazendo e continuar se dedicando ao esporte. Era mais um complemento, um apoio com uniforme, uma ajuda de custo para pagar a faculdade e as despesas com os próprios materiais, como sapatilhas, enfim...”, relata Luísa Parente.
“A grande maioria dos ginastas vêm de famílias de baixa renda e você tinha que pagar muita coisa do próprio bolso: viagens, uniforme, passagens para ir ao próprio treino, alimentação. No comecinho, eu treinava próximo da minha casa e dava para ir a pé. Como os meus pais eram funcionários públicos, eles ganhavam passagem dentro dos benefícios do trabalho deles. Eles já davam essas passagens para a gente ir para a escola. Quando eu voltava da minha escola, já pegava um ônibus que me deixava perto do ginásio, ainda bem! Isso tudo são dificuldades que a gente passa no começo”, conta Daiane.
“Tinha que fazer muita vaquinha para viajar, muita rifa, muito empréstimo meus pais fizeram, mas e os pais que não têm? Essas dificuldades fazem parte desse momento. No meu caso, meus pais conseguiram manter, mas a gente perde muita gente por conta dessa situação. Até mesmo quando se fala de uma adolescente treinando. A gente sabe que a grande maioria das famílias precisa da ajuda financeira dos filhos. O jovem e o adolescente precisam ajudar em casa, de alguma forma. É uma escolha que você tem que fazer: ou você vai ficar no esporte ou você vai trabalhar. Eu fui muito abençoada de poder estar no esporte”. Daiane conseguiu um pequeno patrocínio, na época do Pan de Winnipeg. Ganhava 500 reais da Cia das Pizzas. Com o primeiro salário, a ginasta comprou um tênis marrom de camurça, parcelado em muitas vezes.
Preta, pobre e periférica
A ginasta faz questão de enfatizar a importância da sua estrutura familiar para conseguir superar todos os preconceitos. “Foi muito difícil para algumas pessoas compreenderem, inclusive treinadores, que aquele espaço era o meu espaço de direito também. Foi muito importante a estrutura da minha família. Eu sempre tive [...] uma criação com essa educação de orgulho étnico, como menina negra: sou sim, mas sou também capaz e tenho o direito de estar onde eu quiser.”, afirma.
Segundo ela, o preconceito não é só racial, mas social também. “Sempre vai haver essa dúvida entre a gente, que é preto e pobre. A gente tem que provar três vezes que é melhor do que alguém para estar lá dentro, para ser escolhido, ainda mais quando você vem no combo: uma menina preta, periférica e gaúcha. Vai haver desafios, mas em todo momento eu tive os meus pais e pessoas ao meu lado me orientando. Eu tive que resistir e perseguir um sonho”, pontua.
Mais perto do pódio
A ginasta gaúcha foi para os Jogos Olímpicos de Sydney-2000, como reserva. No ano seguinte, disputou o Campeonato Mundial da Bélgica e alcançou a quinta colocação no solo. “Eu não pensava muito em resultado, eu sempre pensei muito sobre como chegar ao resultado, do que eu preciso para chegar ao resultado: acertar a série, fazer a série o melhor que eu posso porque, na verdade, o resultado é uma consequência do contexto geral da competição, não depende só de você acertar. O primeiro passo que eu queria era acertar, ficar em cima dos aparelhos, ficar dentro do tablado e, depois, aos poucos, eu fui querendo ganhar pódios. Primeiro acertar séries e depois os pódios”, explica.
Na mesma competição, Daniele Hypólito entrou para a história ao se tornar a primeira ginasta brasileira a subir ao pódio num Campeonato Mundial. Dani conquistou a medalha de prata no solo e colocou o Brasil em outro patamar.
Parceria vencedora
Em 2001, foi formada a Seleção Brasileira de Ginástica Permanente, com base em Curitiba, no Paraná, e composta por 22 ginastas lideradas pelo técnico ucraniano Oleg Ostapenko. “Nunca é fácil mudar, mas é necessário para o crescimento. [...] Imagina ir para um lugar completamente diferente, viver com gente que você não conhece, começar a treinar com um treinador que você não conhece. Mas eu acho que foi uma das coisas mais incríveis que poderiam acontecer na minha vida. (...) entendi que se a gente quer o resultado coletivo, a gente tem que treinar com coletividade. Acho que o Oleg ensinou isso para gente a partir da Seleção Permanente. E o mais importante que deu para gente: equidade em relação ao trabalho”, analisa Daiane.
Em Curitiba, as meninas da ginástica se tornaram uma família. “A convivência no Paraná foi boa para todas nós. A gente cuidava muito umas da outras fora do ginásio, a gente saia todo mudo junto, era uma família mesmo.”, destaca Daniele Hypólito. Além de ganhar irmãs mais velhas e mais novas, no Centro de Ginástica do Paraná, Daiane deu início a uma parceria vencedora com treinador ucraniano, morto em julho de 2021. “Daiane se concentrou nas mãos de Oleg. Ele examinou cada detalhe para levá-la ao lugar mais alto do pódio. Seus planos pareciam impossíveis no início, mas ele sabia que não era um sonho impossível. Daiane e seus treinadores acreditaram na experiência dele, e deu certo”, recorda a técnica Iryna Ilyashenlo.
“O Oleg foi uma pessoa que acreditou em mim quando muitos não acreditavam. Ele foi um grande mentor na minha vida, não só para as questões de ginásio, mas fora do ginásio também. Ele era uma pessoa muito generosa em dividir o aprendizado dele e, hoje, é uma das coisas que eu levo na minha vida. Ele foi um mentor muito grande, que me lapidou muito como ser humano, como ginasta. Ele foi um grande apoiador do Brasil. Tudo o que ele podia dar para a gente, ele deu e foi lindo de ver como a gente conseguiu construir com ele e os outros treinadores essa mistura, essa fusão entre Ucrânia e Brasil, essa ginástica que a gente tem hoje, consolidada aqui. Eu tenho uma gratidão muito forte por ele.”, reconhece Daiane dos Santos, destacando a influência de Oleg na nova geração de treinadores.
Duplo twist carpado, o “Dos Santos I”
Daiane dos Santos não planejava ter um salto com o seu nome no Código de Pontos da Federação Internacional de Ginástica (FIG), quando ele fez parte da série preparada para o Campeonato Mundial de Anaheim, nos Estados Unidos, em 2003. Tudo o que ela queria era uma acrobacia nova, de valor alto no solo. “O duplo twist carpado nasceu numa época de adversidade. Eu machuquei o meu joelho antes do Mundial. A gente precisava de uma acrobacia que completasse a série e que fosse diferente das acrobacias que eu já tinha. Eu já tinha acrobacias de valor alto no solo e uma delas eu não estava conseguindo fazer, então, precisava trocar essa acrobacia. Aí o Oleg veio com essa ideia de construção do duplo twist carpado, a ideia foi dele. Ele me orientou a fazer na posição carpada, só que eu nunca perguntei para ele e ele nunca me falou que esse exercício não existia”, detalha Daiane.
Com muito treino, o elemento foi aperfeiçoado e incluído na série. “Ele só me contou no treino de pódio. Eu não tinha percebido que eu era a única que fazia esse movimento, só fui perceber lá”, relembra. A acrobacia inédita, composta por um twist, conhecido também como pirueta (giro em torno de si mesmo), seguido de dois mortais, na posição carpada (pernas esticadas em direção ao peito) foi apresentada sem erros, no Mundial, como dita o protocolo da FIG, e homologada com o nome “Dos Santos I”.
“O meu sentimento é de orgulho pela minha família, porque é o nome da minha família que está lá. Isso é para sempre, eu não vou estar mais aqui na terra e o nome ainda vai estar lá no Código de Pontuação e com a bandeira do Brasil na frente. Dos Santos é um nome muito comum no nosso país e representa muito os brasileiros”, comemora.
“Dos Santos II”
O “Dos Santos II” surgiu a partir de um desafio. “O duplo twist estendido nasceu quando o Oleg me pediu um exercício e, como eu não conseguia fazer, eu pedi para tentar na posição estendida. O Oleg era um treinador que sabia tratar muito bem com cada ginasta, ele sabia o que impulsionava cada uma e ele sabia que eu sou muito impulsionada por desafios. Se me falam: ‘Duvido que você vai fazer isso!’ é o suficiente. Ele começou a falar: ‘Eu sei que você não vai conseguir fazer. Você é muito fraquinha para fazer isso’. Aí eu fui lá e fiz, acertei. E ele falou: ‘Foi sorte! Faz de novo’ e eu fiz”, narra a ginasta.
Equipe Brasileira Completa
Quando embarcou para a Califórnia, em agosto de 2003, para disputar o Campeonato Mundial de Anaheim, nos Estados Unidos, Daiane dos Santos, assim como todas as ginastas convocadas, tinha como objetivo maior realizar o feito inédito de classificar uma equipe brasileira completa para os Jogos Olímpicos de Atenas-2004. “Essa era a expectativa de todas nós. A Seleção Permanente foi criada para o Mundial de 2003, para gente estar no Mundial e em Atenas. A meta era levar seis ginastas para os Jogos Olímpicos, algo que o Brasil nunca tinha feito”, explica Daiane.
No Mundial da Bélgica, em 2001, Daniele Hypólito havia conquistado a medalha de prata no solo, o histórico primeiro pódio do país em mundiais; e Daiane terminou em quinto.
Primeira ginasta negra no topo do mundo
Com seu inédito duplo twist carpado, Daiane se classificou para a final do solo, superou a romena Catalina Ponor, que seria campeã olímpica em Atenas-2004; e a espanhola Elena Gomez, atual campeã mundial, e conquistou a medalha de ouro para o Brasil. “Quando saiu a nota, eu não acreditei, dá para ver na minha cara ali, no vídeo. É muito legal ter um trabalho e poder ter o resultado que a gente gostaria que tivesse. Até porque esse trabalho não é só seu, é um trabalho de muitas pessoas conjuntas com você”, revela.
O ouro de Daine foi o primeiro da ginástica brasileira, tanto no masculino quanto no feminino, e também entrou para a história como a primeira vez que uma ginasta negra subiu ao degrau mais alto do pódio num Campeonato Mundial. “Quando a gente é campeã, a gente leva uma nação inteira, a gente faz essa nação campeã, leva o Brasil ao lugar mais alto do pódio. Nós brasileiros somos campeões, não é a Daiane, é o Brasil! O Brasil é porque a Daiane é. Há esse sentimento, quando você sobe ao pódio, de orgulho, de não acreditar, de ficar descrente. Eu demorei muito tempo para assimilar isso”, festeja.
Um novo tempo na ginástica
No dia 24 de agosto de 2003, Daiane dos Santos tornou possível o que, durante muito tempo, parecia impossível. “A brasileirinha ganhou a primeira medalha mundial de ouro do Brasil. Isso foi realmente fenomenal. Ela mostrou que é possível, sim, ter ginástica de altíssimo rendimento de pódio, porque, até então, nós tínhamos duas medalhas de ouro em Pan-Americano, mas foi num patamar continental, e ela foi campeã numa disputa de toda a ginástica mundial. Isso, sem dúvida nenhuma, colocou o Brasil nesse cenário maravilhoso”, analisa Luísa Parente, primeira brasileira a conquistar uma medalha de bronze nos Jogos Pan-Americanos (bronze nas barras assimétricas, em Idianápoilis-1987) e também as duas primeiras medalhas de ouro do Brasil na disputa individual, no Pan de Havana-1991, nas barras assimétricas e no salto.
Daniele Hypólito destaca a importância das conquistas históricas dela própria, e de Daiane dos Santos. “Foi quando muita gente começou a acompanhar a modalidade, foi quando se criou essa curiosidade de entender o nosso esporte, de saber, de torcer. Então, mudou a realidade no sentido de a gente começar a conseguir investimento e, a partir daí, experimentamos a entrada de patrocínios”.
“A conquista do ouro da Daine trouxe uma mudança muito relevante, principalmente por ser uma mulher preta numa geração onde o esporte era pouco valorizado. A gente só tinha uma medalha em Mundial, que era da Dani. Então, ter uma outra medalhista mundial, ainda mais de ouro, fez com que a gente pudesse ter esperança de poder ter grandes resultados”, afirma Diego Hypólito, o primeiro ginasta do Brasil e da América do Sul a conquistar uma medalha em mundiais, no masculino.
Jade Barbosa, medalha de bronze por equipes na Olimpíada de Paris-2024, fala sobre o respeito e a visibilidade após a conquista inédita de Daiane. “Nós começamos a ser olhadas de outra forma dentro do cenário mundial de ginástica. Uma atleta preta brasileira, com um elemento novo e uma música brasileira extremamente forte foi campeã mundial no solo. Essa conquista foi muito, muito importante para gente, justamente por trazer esse respeito e começou a popularizar o esporte”, pontua.
Representatividade
Mesmo com a popularização da ginástica artística, a chegada de patrocinadores, a entrada do Brasil para a elite da modalidade e a fama estrondosa que transformou seu nome em sinônimo de ginástica, Daiane dos Santos ainda levou algum tempo para compreender o que aquela medalha de ouro representava para o seu esporte e para os pretos dentro e fora do país.
“O significado daquela conquista eu compreendi depois de adulta, depois de parar de treinar, apesar de eu já saber das minhas responsabilidades como mulher preta e tudo o que significava ali. Quando a gente é atleta, a gente pensa muito no quantitativo: eu sou a número um do mundo, sou medalha de ouro no mundo, mas não é eu sou, nós somos, o que aquilo representa para as pessoas pretas no mundo, uma etnia que sempre é desacreditada, que sempre é associada com coisas negativas”, declara a ginasta, que aproveita para citar o destaque de Rebeca Andrade e Beatriz Souza, ambas campeãs olímpicas nos Jogos de Paris-2024.
“Quando você tem esse lugar, como agora Rebeca e Bia, as únicas medalhas de ouro individuais do Brasil em Paris 2024 - não estou menosprezando as outras medalhas -, mas é muito significativo esse lugar mais alto. Quando a gente vê essa posição ali, estar nessa posição de destaque, duas mulheres pretas, isso fala muito para esses 56% da população que é invisível, que é desprezada, que é oprimida, muitas vezes associada a coisas negativas, é você ser um exemplo para todos. Isso tem um significado muito grande. Hoje eu acho que eu compreendo melhor do que eu compreendia como atleta.”
Ainda sobre o recorte racial, Daiane continua “Essa construção racial vem e não tem como eu separar esse título dessa parte, porque isso para mim é uma coisa que conta muito. As crianças de periferia, a questão etária, de quem começa tarde no esporte, que, às vezes, é podado antes e, às vezes, nem entra. Você tem um monte de sentimentos ali e você não consegue descrever bem. É alegria, felicidade, sensação de explosão, você tem raiva, muitas vezes, de tanta coisa que aconteceu, de tanta gente que duvidou... É uma doideira”, conclui.
Aída dos Santos, primeira brasileira a participar de uma final olímpica; e Melânia Luz, primeira mulher negra do Brasil a participar de uma Olimpíada, são referências para Daiane dos Santos. “Resistência e perseverança é o que define a atuação das mulheres pretas no esporte no Brasil. Atletas como a Daiane e a Rebeca viram que eu fui para uma Olimpíada sem ter apoio e trouxe resultados, sendo mulher e negra. Elas se espelharam em mim e na Melânia e viram que elas também poderiam ir e fazer melhor”, opina dona Aída.
“Muitas vezes a gente acha que não vai conseguir ou que não vai ter oportunidade, que não vai ter capacidade... Então, poder olhar para trás e ver o quanto a Dai conquistou sendo a pessoa que ela é, vinda de onde ela veio, passando por todos os problemas e dificuldades que ela precisou passar para poder alcançar lugares tão altos na carreira dela e ver que ela conseguiu fazer tudo isso é um motivo de inspiração, de motivação. Nossas histórias muito parecidas e parecidas com diversas histórias de meninos e meninas dentro do Brasil”, compara Rebeca Andrade, a primeira brasileira a conquistar uma medalha olímpica na ginástica, prata no individual geral e ouro no salto, em Tóquio-2020.
Atenas 2004
Ao som do choro “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo, que se tornou sua “melodia de vida”, Daiane chegou à sua primeira Olimpíada, em Atenas-2004, com o status de campeã do mundo. “Havia uma autocobrança muito forte e um trabalho nosso para isso, para eu ser uma medalhista olímpica. Quando essa cortina abriu, em Atenas, o sonho de estar nos Jogos Olímpicos se realizou. Eu pensava: eu sou o Brasil, eu preciso fazer o melhor porque eu sou o Brasil aqui.”, relembra com carinho.
Apesar da boa série, a brasileirinha deu um passo para fora do tablado, por duas vezes, na final olímpica, e ficou sem a tão sonhada medalha, terminando a competição em quinto lugar. “Eu fui a primeira ginasta do Brasil a entrar para uma final olímpica individual, com chance real de ser medalhista”, orgulha-se. “Foi a melhor colocação do Brasil, mas eu vou dizer que, na época, eu fiquei irritada, porque a gente não treinou para ficar em quinto, a gente treinou para ficar no pódio. Teve um passo para a frente, foi um passo a mais. E a gente está falando do maior evento olímpico do mundo. Um passo a mais te tira do pódio. Um dedo fora do lugar te tira uma medalha. Qualquer coisinha você vai ter esse revezamento de quem está no pódio e de quem está fora. O que eu sei é: eu treinei para estar no pódio, mas não foi isso que aconteceu”, conforma-se.
Feito inédito com o pé quebrado
Depois de conquistar a medalha de prata por equipes, no Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro, em 2007, Dai foi para o Campeonato Mundial de Stuttgart, na Alemanha, com graves lesões. “Isso é muito interessante nos atletas do alto rendimento: às vezes a lesão aparece no momento mais indesejado. Eu quebrei o pé em maio, num evento no Brasil, antes do Pan do Rio. E além disso, eu luxei o outro pé, para nossa alegria”, ironiza. Depois de três meses do Pan, a gente teve o Mundial. Eu não sei explicar, mas pensa: você trabalhou muito para conquistar algo e, chega na hora, você não vai? Ah! Você vai! Eu queria muito estar lá”. O Mário Namba, que era o médico da seleção, não mentiu para mim, ele falou: ‘Dai, o caso é cirúrgico, só que não tem como operar. Se você operar agora, você não vai conseguir competir no Mundial.”
“Adaptamos os treinos e graças a Deus, deu certo. A dor do pé era alucinante, até pouco tempo atrás, eu pensava e já me dava vontade de chorar, de tão intensa que era essa dor. Mas a minha dor, com certeza, seria muito maior se eu tivesse estado com as meninas lá”, diz Daiane.
A equipe brasileira foi a quinta melhor do mundo num Mundial, pela primeira vez na história. “Foi muito importante a garra da Daiane, em 2007. Ela fez questão de ajudar a equipe a ficar em quinto lugar, ela fez questão de competir tudo o que ela tinha que competir em 2007 para o melhor do Brasil, para o melhor da seleção e isso foi um exemplo para as mais jovens, que estavam junto com a gente já, integrando aquele momento na seleção, para mostrar que quando a gente veste a camisa do Brasil, a gente tem que lutar até o final. Ela competir da forma como ela competiu, ter a garra, ter a força, querer, lutar, batalhar, foi grandioso”, exalta Daniele Hypólito, que também fazia parte da equipe.
Doping
Durante toda sua carreira, Daiane dos Santos sofreu com muitas contusões. Foram 11 cirurgias, mas ela nunca pensou em desistir.Daiane precisou fazer uma osteotomia no joelho, que não é uma lesão por trauma, mas é uma lesão recorrente por vários traumas acumulados. E foi exatamente durante a recuperação da osteotomia (cirurgia que consiste em cortar o osso da tíbia ou do fêmur para corrigir o alinhamento da perna e aliviar a dor no joelho), logo após os Jogos Olímpicos de Pequim, que exigiu um longo período de recuperação longe das competições, que a campeã mundial viveu o capítulo mais triste da sua carreira, o doping.
Mesmo fora da ginástica, Daiane foi submetida a um exame antidoping que acusou a presença de furosemida, uma substância diurética, aplicada num tratamento estético feito por ela. “A furosemida não tem uma ação dopante, ela não ajuda no potencial, a não ser que você seja, por exemplo, de uma modalidade de luta, onde você dependa de peso para conseguir participar da competição. Esse não é o caso da ginástica! É complicado, eu expliquei, mas as pessoas não entendiam”, informa.
À época, o Pinheiros esclareceu que a atleta estava inelegível para a realização de tal exame, uma vez que havia sido excluída da Seleção Permanente de Ginástica.
“O doping foi o capítulo mais triste da minha vida! Isso não é só sobre ser atleta, não. Primeiro porque foi uma sucessão de erros. Eu não estava na Seleção, eu não podia nem treinar, estava operada”, explica. “O julgamento das pessoas é o pior de tudo, você ser julgada por uma questão e as pessoas nem sabem o que elas estão falando. Não é sobre ser atleta, é sobre ter uma boa índole humana, de ser uma pessoa correta, que é tudo o que os meus pais sempre construíram em mim”.
Segundo ela, o maior temor não era ser afastada da ginástica, mas a reação dos pais ao verem a índole da filha ser colocada em dúvida. “Eu tive que arcar com tudo. Eu paguei uma conta que era muito cara, mas, mais cara que uma conta financeira, foi a conta da imagem com que as pessoas poderiam ficar sobre a minha carreira, como pessoa. Nunca pensei estar num júri na minha vida!”, emociona-se. “É o único momento de que eu me arrependo e que eu nunca gostaria de ter no meu currículo. Não é nem no meu currículo como atleta, é no meu currículo como pessoa.”, repete.
Daiane foi penalizada com uma suspensão de cinco meses de afastamento, período menor do que era necessário para a sua recuperação pós-cirúrgica. “Foi uma lição muito amarga, difícil, mas que, graças a Deus, passou. Eu tive a compreensão e o carinho das pessoas muito forte”, finaliza.
Muito além do pódio olímpico
Nos Jogos Olímpicos de Pequim-2008, Dai ficou na sexta posição do solo. A maior conquista foi classificar o Brasi para a disputa da final por equipes feminina, pela primeira vez. “A gente era uma das melhores equipes do mundo ali, só que aquela equipe estava muito machucada. Não era só eu, todo mundo estava machucado”, conta.
Em Londres-2012, sem nenhuma contusão, Daiane dos Santos encerrou sua carreira, mais uma vez, sem medalha olímpica. “Eu não posso dizer que a medalha olímpica não fez falta porque eu treinei para ela vir. Óbvio que a gente treinou muito para isso acontecer, Deus não quis e está tudo bem”, resigna-se. “Eu acho que eu me sentiria frustrada se eu não tivesse dado o meu máximo para isso acontecer, mas eu sei que eu dei. Eu queria muito a medalha olímpica porque sei que eu trabalhei muito. [...] Eu fiz parte da primeira Seleção que foi para uma Olimpíada completa, eu fiz parte dessa história, desde a classificação até estar lá. Eu fui para duas finais olímpicas com chances reais de ser medalhista e não sou medalhista”, constata.
Ao encerrar sua carreira, Daiane contabilizava nove ouros, duas pratas e um bronze em Copas do Mundo; o título histórico de campeã mundial; duas pratas e três bronzes em Jogos Pan-Americanos e, mais que isso, o título de grande referência na sua modalidade, um ídolo no Brasil e no mundo, exatamente como Oscar Schmidt, no basquete, e Maria Lenk, na natação.
“O esporte de alto rendimento, às vezes, é cruel: você pode ter treinado à exaustão, ter feito tudo que podia e, ainda assim, perder. Às vezes não tem muito o que fazer, o seu adversário simplesmente competiu um pouco melhor do que você”, analisa Oscar Schmidt, medalha de bronze no Campeonato Mundial das Filipinas, em 1978, e recordista de pontos em Olimpíadas.
Depois de encerrar a carreira na ginástica, Daiane recebeu vários convites para atuar na televisão. Na Rede Globo, ela atua como comentarista das competições de ginástica transmitidas pela emissora aberta e pelo canal por assinatura Sportv e tem a emoção como marca registrada.
Hall da Fama
Mantendo sua tradição de pioneirismo, Daiane dos Santos é a primeira atleta da ginástica, no masculino e no feminino, a entrar para o Hall da Fama do COB. “Eu fiquei tão feliz e tão nervosa, ao mesmo tempo, porque eu acho que é algo muito significativo. Eu sou a primeira do meu esporte! Espero que tenha muitos outros comigo, que eu não seja a única, mas eu sou a primeira. Eu estou no Hall da Fama do COB junto a mulheres incríveis que eu admiro. Estou afirmando a valorização da mulher preta, da pessoa preta dentro do esporte. Isso significa muito para mim. É uma recompensa, me orgulha muito”, enfatiza Dai.
“A geração da Dai abriu muito o caminho! E ela sempre foi muito emotiva, as competições eram intensas e ela mobilizava muito as pessoas com a questão dos saltos altos que ela fazia, numa geração em que o tablado não tinha molas”, destaca Diego Hypólito. Segundo Daiane dos Santos, alguns dos seus saltos alcançavam quase três metros de altura.
Projeto Brasileirinhos
Daiane investe na cidadania de crianças no Projeto Brasileirinhos, em Paraisópolis, na capital paulista. “O Projeto nasceu nessa construção de retribuir a oportunidade que o esporte me deu. Não é só sobre medalhas, é sobre você ter, de alguma forma, a presença de pessoas que levam você a ir além do que você imagina que seja capaz. Quando a gente fala de projeto social de comunidade, a gente está levando ali uma imagem de vitória para um lugar que, muitas vezes, a gente só vê derrota”, analisa. “A ginástica me deu uma vida. A ginástica me deu mais do que medalhas, ela me deu realizações de sonhos que eu sonhava e também de sonhos que eu nem imaginava. Eu sonhei ser uma educadora física e a ginástica me deu essa oportunidade; eu sonhei ser uma ginasta e a ginástica me fez ser a melhor do mundo.”, agradece Daiane dos Santos.
A grandeza da ginasta de 1,47m está eternizada num mural de 50 metros de altura, pintado pelo artista Kelvin Koubik, no prédio da Fecomércio-RS, ao lado do Viaduto Conceição, no Centro de Porto Alegre, sua cidade natal.

