Há um traço na personalidade de Torben Grael que fica evidente quando conhecemos a dedicação que ele empenhava em seus barcos ao prepará-los para as competições que participava quando ainda era um jovem velejador em Brasília, onde viveu com a família na década de 1970. No Iate Clube, às margens do Lago Paranoá, Torben, ainda na adolescência, dedicava-se a uma tarefa que exigia doses elevadas de paciência e entrega: um a um, ele retirava os parafusos de seu barco, serrava as pontas das peças e, depois, as apertava de volta na embarcação. O objetivo do esforço era simples: deixar o barco mais leve possível para as regatas.
“A gente serrava a ponta do parafuso para tirar o peso. É um conceito. Pode parecer que aquela ponta específica não faz diferença. E realmente não faz, mas se juntarmos todas as pontas de parafuso do barco já dá alguma coisa”, explica Torben.
“O conceito serve para tudo no barco. Você tira tinta e deixa a tinta em uma camada mínima que dá acabamento. Porque, na época, era um barco de madeira que eu velejava, e as pessoas vão pintando, pintando e vai ficando com várias camadas, mais pesado. Então, você raspa e começa de novo. São muitas coisas que, juntando tudo, no final dá uma diferença grande”, continua.
“No Snipe, que era o barco que a gente velejava em Brasília, não eram muitos parafusos. Mas quando você vai para um barco de oceano e começa a serrar tudo e botar em um balde, vê que faz diferença. E é isso com tudo. É uma busca por frações de segundo, como na Fórmula-1, guardada as devidas proporções”, ressalta.
Obviamente que as horas que passou a desaparafusar, serrar e parafusar novamente pequenas peças em seu barco ou a lixar as laterais para reduzir as camadas de tinta não foram a causa do imenso sucesso de Torben Grael no esporte, mas uma conclusão simples há de ser retirada dessa história: quem se entrega a uma paixão com este nível de dedicação está disposto a ir muito longe. E, em muitos casos, mais cedo ou mais tarde acaba sendo recompensado.
O mar na veia
Torben Grael nasceu em São Paulo, em 22 de julho de 1960. Criado na maior parte de sua vida em Niterói, no Rio de Janeiro, ele veio ao mundo como o segundo dos três filhos de Dickson Melges Grael e Ingrid Schmidt Grael.
Quando nasceu, a paixão pela vela e pelo mar já corria no sangue daquela família de origem dinamarquesa, cujo patriarca, Preben, foi um dos pioneiros da vela no Brasil. Torben ainda era um bebê quando seus tios, os gêmeos Erik e Axel, entraram para a história da vela brasileira em 1961, na classe Snipe, como os primeiros campeões mundiais do país, feito que repetiram nos dois Mundiais seguintes, em 1963 e 1965.
Antes, os dois haviam conquistado a medalha de ouro nos Jogos Pan-americanos Chicago 1959 e a prata nos Jogos Pan-americanos seguintes, em São Paulo. Juntos, eles também disputaram os Jogos Olímpicos Cidade do México 1968 e Munique 1972.
Com isso, desde muito pequeno, Torben, assim como seu irmão mais novo, Lars, cresceu num mundo de mar, barcos e velas.
“Essa tradição é meio que consequência de uma paixão que vem sendo transmitida em família. Iniciou com o meu avô, depois com meus tios, minha tia, minha mãe, depois eu, Lars, meus primos e, agora, essa outra geração, com o Marco, a Martine (seus filhos) e o Nicholas (sobrinho, filho de Lars). Obviamente, temos muita sinergia com o assunto vela, meio ambiente, mar... Falamos com frequência sobre isso”, conta Torben.
O começo, no Aileen
Memórias precisas de infância são quase impossíveis de serem resgatadas. No caso de Torben, em suas lembranças, a história toda começou em algum lugar entre os anos de 1965 ou 1966, ao lado do avô Preben Schmidt.
“Com certeza, a minha primeira experiência na vela foi com o meu avô, no Aileen. Esse era o nome do barco”, diz, com segurança. “Eu não sei direito, mas eu tinha uns 5 ou 6 anos. Foi aqui em Niterói”, continua.
Por uma dessas ironias do destino, o barco que levou Torben ao mar pela primeira vez não era uma embarcação vulgar. O Aileen tinha uma linhagem especial e já havia ocupado um lugar de destaque na maior competição esportiva do planeta.
“Esse barco era de 1912, um barco que meu avô comprou aqui no Brasil, mas que tinha sido construído na Dinamarca e que foi medalha de prata pela Dinamarca em 1912, nos Jogos de Estocolmo, na Suécia”, revela Torben.
Àquela altura, os Grael ainda não haviam iniciado sua incrível tradição de pódios olímpicos, mas o Aileen não poderia ter ido parar em melhores mãos. A paixão que Preben transmitiu aos seus descentes os levaria a conquistar, entre outros resultados fantásticos, oito medalhas, três delas douradas, o que faz da família Grael a mais vencedora do país em Jogos Olímpicos .
Entre os barcos e as raquetes
“A vela foi uma coisa bem lúdica no começo. A gente até fazia algumas regatinhas, mas era uma coisa sem nenhuma pretensão. Em 1970, fomos morar em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, e ficamos lá três anos. Meu pai era militar e o acompanhávamos. Moramos em vários lugares do Brasil. Nesse período de Uruguaiana, comecei a jogar tênis também. Eu tinha uns 10 anos. Passei a jogar de maneira mais competitiva e cheguei a disputar um torneio na Argentina. Foi um período em que eu me dediquei muito a isso”, recorda Torben.
“Depois, fomos para Brasília em 1973. A gente continuou jogando tênis, pois o Iate Clube tem uma ótima estrutura para o tênis, e o vento nem sempre estava presente. Quando não estávamos velejando, podíamos ser encontrados nas quadras de tênis. Também jogávamos vôlei, basquete”, prossegue.
O fato foi que, tendo Torben nascido entre os Grael, o tênis simplesmente não teve chance de verdade com ele. Principalmente quando ele e a família se mudaram para a capital. No Iate Clube, o mundo das regatas entrou definitivamente na vida de Torben. E, para isso, como cantaram os Beatles, ele contou com uma ajudinha de seus amigos.
“Não cheguei a pensar em ser um atleta do tênis. No comecinho, em Uruguaiana, talvez. Mas já em Brasília a gente já começou a competir na vela. Lá eu comecei a me interessar pelo esporte da vela e o Iate Clube tem uma estrutura muito boa, apoia bastante. Na época em que moramos lá, tinha um grupo muito forte na vela, o que ajudou bastante o meu desenvolvimento. Tive a oportunidade de dividir a raias com ótimos velejadores, como César Castro, Romel Castro, Edgard Hasselman, Guilherme e Jorge Raulino”, diz Torben, em tom de agradecimento.
Interesse x frustração
Ninguém nasce campeão. A partir dessa máxima, a diferença entre uma carreira bem-sucedida no esporte e a desistência ou frustração no meio do caminho dependem de uma série de fatores. Às vezes, eles estão além do controle de quem sonha com a glória. Em muitos casos, a sorte pode favorecer. Mas para os que chegam lá existem algumas qualidades que todos aprenderam a cultivar. Entre elas estão a paciência, a perseverança, o trabalho duro e, no caso de Torben, o interesse em aprender.
“A vela é um esporte que depende muito de conhecimento. Quando se está começando e competindo contra pessoas experientes não é fácil. O resultado não vem com muita rapidez. Demorou um bom tempo até começar a ter os resultados melhores”, conta o velejador.
“Às vezes é um pouquinho frustrante, porque você treina, se dedica, quer ver os resultados, mas as coisas não acontecem imediatamente. Tem que ter paciência, perseverança, estudar, aprender”, diz o campeão olímpico que, aos 18 anos, estava cada vez mais ávido por conhecimento.
“Eu tinha muito interesse. É uma coisa que as pessoas dão pouca atenção hoje, mas eu trabalhava muito nos barcos, estudava muito meteorologia, livros sobre técnicas de afinamento de barco, de aerodinâmica...”, relata.
E em meio a tantas qualidades, havia até espaço para a superstição.
“A gente está procurando sempre tudo o que nos ajude. Superstição é aquilo: no creo en brujas, pero que las hay, las hay’...”, diz sorrindo. “Por que que eu vou botar maus fluidos ali? A maioria das superstições têm seus motivos. Eu não gosto de falar muito não, mas sou supersticioso”, admite.
Ventos em Brasília
Além de amigos bons na vela e que estavam dispostos a ensiná-lo, Torben Grael aprimorou sua técnica em Brasília devido a um outro fator: os ventos característico e inconstantes da capital.
“Fiquei cinco ou seis anos, de 1973 a 1978, em Brasília, um lugar difícil para velejar. Algumas vezes tem vento forte, mas normalmente o vento é fraco, com nuances. A parte tática e o próprio comportamento do vento no lago têm suas particularidades. Aprende-se muito velejando lá”, explica. “Isso para mim foi muito útil. Depois eu vim aqui para Niterói e junto com tios eu me aprimorei também na parte de onda, de vento forte, principalmente em um período em que a gente treinou muito em Búzios, onde o vento é bem forte. Mas esse aprendizado nos ventos fracos e inconstantes foi sempre muito útil”, ressalta, referindo-se aos tios Erik e Axel.
Assim, amparado por uma combinação de qualidades em seu caráter e tendo aprimorado sua técnica em diversas condições climáticas com a ajuda dos tios e dos amigos, Torben Grael tornou-se um exímio velejador. Com isso tudo alinhado, ele deu início a uma impressionante coleção de títulos.
Em 1978, quando completou 18 anos, Torben conquistou o primeiro de seus seis títulos mundiais, sagrando-se campeão júnior da classe Snipe, em San Diego, nos Estados Unidos. Nessa mesma classe, ele venceu os Mundiais do Porto, em Portugal, em 1983, e de La Rochelle, na França, em 1987.
Depois disso, pela classe Star, foi campeão mundial em Cleveland, nos Estados Unidos, em 1990, venceu o Mundial de One Tonner em Skovshoved, na Dinamarca, em 1992, e o Mundial de 12 Metros em Saint Tropez, na França, em 1999.
Somam-se a esses resultados nove vice-campeonatos mundiais, 12 títulos em Campeonatos Continentais disputados no Brasil e no exterior, além de mais de 45 títulos em Campeonatos Brasileiros conquistados em oito classes.
Assim como no futebol a carreira de qualquer jogador atinge um outro patamar com a conquista de uma Copa do Mundo. Na vela, para ser grande de verdade, é preciso brilhar nos Jogos Olímpicos. E, nesse ponto, Torben Grael também foi excepcional.
A prata e o bronze