Quando o imigrante alemão Lui Paul Lenk lançou a filha mais velha nas águas do então límpido Rio Tietê - presa por uma vara de alumínio e amarrada pela cintura - com o intuito de ensiná-la a nadar, seu maior objetivo era fortalecer os pulmões da menina de 10 anos, que havia sobrevivido bravamente a uma pneumonia dupla, na São Paulo de 1925, época em que ainda não havia antibióticos. Mal sabia ele a importância daquele inocente mergulho na vida de Maria Emma Lenk Zigler e na história do esporte brasileiro. Primeira brasileira a disputar os Jogos Olímpicos, Maria Lenk desbravou o mundo, bateu recordes mundiais e mostrou para todos e, principalmente todas, que esporte podia, sim, ser lugar de mulher. Com participação importante na organização do esporte nacional ao parar de competir, Maria Lenk nadou até o último momento de sua vida, marcada por quebra de barreiras e pioneirismo. Faleceu na piscina, nadando para a eternidade, aos 92 anos.
Poucos anos depois de aprender a nadar, a adolescente Maria Lenk embarcou, com 17 anos e sem a companhia dos pais, rumo aos Jogos Olímpicos de Los Angeles-1932. Única mulher entre 82 atletas da delegação no lendário navio Itaquicê. Apenas 66 desembarcaram e competiram, já que era preciso pagar a taxa de um dólar para o desembarque de cada atleta. Como a delegação não contava com reservas suficientes, apenas os que tinham reais chances de conquistar medalhas na competição desembarcaram. Lenk era um deles. A outra representante do sexo feminino a bordo, além dela, não era atleta: dona Ivone, a jovem esposa de Sylvio de Magalhães Padilha, membro da equipe de atletismo e futuro presidente do COB.

“Minha avó foi no Itaquicê também. Ela havia sido escolhida, num concurso de um jornal carioca, como a ‘Rainha da Delegação’, revela o advogado Alberto Murray, neto do Major Padilha.
Mesmo sendo menor de idade, Maria não encontrou resistência por parte da família para viajar.
“O meu avô era uma pessoa bem liberal, inclusive em relação às filhas. As duas foram criadas de forma mais despojada que o comum na época, sem grandes amarras, a não ser os cuidados naturais com a saúde e a integridade, bem diferente de outras famílias. Na época não se permitia que as filhas viajassem desacompanhadas”, observa Francisco da Silva Júnior, ex-coronel da Marinha e filho de Sieglinde, irmã caçula de Maria Lenk.
Segundo ele, o navio Itaquicê pertencia a Henrique Lages, um milionário famoso.
“Colocaram a tripulação da Marinha e um canhão na frente, disfarçando a embarcação como se fosse um navio de guerra, para não ter que pagar taxa no canal do Panamá, mas não funcionou. Também havia a bordo muitas sacas de café para serem vendidas e custearem as despesas da viagem. A Maria teve uma atuação importante durante o trajeto. Ela falava alemão e inglês fluentemente e ajudou nas negociações. Era a intérprete da delegação naquela viagem épica”, conta.
Destino mudado pela Primeira Guerra
Nascido em Reichembach, na Alemanha, numa família de posses, o pai de Maria, Lui Paul Lenk, chegou ao Brasil em 1910, acompanhado da esposa Emma, e se estabeleceu na região das Missões, no Rio Grande do Sul. Depois, mudou-se para São Paulo e a esposa, que tinha saúde frágil, faleceu. Anos mais tarde, Lui casou-se, pela segunda vez, com a enfermeira alemã Martha Rosa Kerzler. Em 1914, quando Rosa engravidou, a família decidiu que ela daria a luz na Alemanha e embarcou para lá.
“Com as notícias de que a Primeira Grande Guerra Mundial estava para começar e como Rosa havia recebido uma convocação para voltar a atuar como enfermeira na Alemanha, eles decidiram retornar ao Brasil. Embarcaram no último navio antes do início dos ataques”, conta Silva Júnior. Assim, as gêmeas Maria e Herta nasceram em São Paulo, no dia 15 de janeiro de 1915. Essa foi a primeira vez que uma guerra mudou o destino de Maria Lenk.
Esporte e saúde
Pouco mais de um ano depois do nascimento das filhas, Lui sofreu um novo golpe com o falecimento de Herta, a gêmea mais franzina, vítima de problemas digestivos. Bancário de profissão, o pai de Maria Lenk dava aulas gratuitas de ginástica e natação e enxergava na prática de esportes um método eficiente para a conservação da saúde. Foi isso que fez a pequena Maria a dar suas primeiras braçadas.
“Trabalho em mim mesmo, exercitando-me fisicamente, a fim de obter um físico forte e manter minha saúde, coisa tão preciosa para não sucumbir na luta pela existência; saúde esta que nos proporciona também viver a vida com alegria, para a satisfação própria e dos próximos, evitando de ser-lhes carga extra, como são os enfermos”, escreveu Lui Paul num trecho do seu diário, reproduzido por Maria Lenk no seu livro “Braçadas & Abraços”, publicado em 1986.
Em 1917, a família Lenk cresceu com a chegada de Ernesto. Em 1919, nasceu Sieglinde, a caçula. Segundo Silva Júnior, filho de Sieglinde, Lui Paul atuava como professor de natação no Clube de Regatas Tietê, e como professor de ginástica na escola alemã em que as filhas estudavam e no Cube Germânia, hoje Esporte Clube Pinheiros. Morando no bairro de Santana, na capital paulista, bem próximo aos clubes Espéria e Tietê e da Associação Atlética São Paulo, com pai esportista, mãe enfermeira, conscientes da importância da atividade física para a saúde e com um estilo liberal de educação, os três filhos de “Paulo” e Rosa não tardaram a fazer sucesso. Ernesto foi jogador de basquete e as irmãs Lenk passaram a ser sinônimo de natação.
As primeiras competições em São Paulo foram realizadas no Rio Tietê.
“As disputas aconteciam em raias armadas em uma enseada do rio, delimitada por ‘pontões’ colocados sobre tambores nas cabeceiras e apoiadas firmemente no fundo”, relata Silva Júnior. “A primeira piscina para natação do Brasil foi a do Paulistano, em 1926. Na época da Maria Lenk não era comum que se nadasse em piscinas, e a primeira fase de sua carreira foi no Rio Tietê. Só no início da década de 1930 é que as competições em piscina se tornaram mais comuns”, diz Renato Cordani, diretor geral da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos – CBDA e autor do livro “80 Anos de História da Natação Brasileira”.
Maria Lenk ficou em segundo lugar quando competiu pela primeira vez numa piscina. O ano era 1930 e o evento marcou a inauguração da piscina da Associação Atlética de São Paulo. Marina Cruz foi a vencedora.
Viajando sozinha

No início dos anos 1930, as mulheres enfrentavam muitas dificuldades e a palavra “independência” não fazia parte do vocabulário feminino.
“A mulher não era considerada cidadã, não podia votar. O voto facultativo foi concedido somente em 1932. A legislação era outra, as mulheres não trabalhavam fora, não tinham controle de suas finanças, eram vistas como reprodutoras, não participavam de negócios, pouquíssimas podiam estudar”, relembra a professora Ana Miragaya, autora do livro internacional bilíngue “Maria Lenk: Atleta, Educadora e Cientista. A Primeira Heroína Olímpica do Brasil” (Editora Engenho, Arte e Cultura).
Foi nesse cenário que, em 1931, com uma mentalidade progressista, o pai de Maria Lenk permitiu que ela embarcasse para uma competição no Rio de Janeiro, juntamente com Marina Cruz. “Aquele foi o primeiro confronto entre nadadores das duas maiores metrópoles brasileiras”, destaca Silva Júnior. Ele diz que o pai de Marina Cruz ficou responsável pela guarda da delegação e das meninas nadadoras, rompendo resistências e preconceitos à participação em competições nacionais das moças.
Pioneira em Olimpíadas
Ao pular na piscina para as provas de natação dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, depois de uma viagem cansativa que durou 27 dias, Maria Lenk entrava para a história como a primeira mulher sul-americana a participar de uma Olimpíada.
“Sempre admirei muito a Maria Lenk pelo pioneirismo. Eu comecei muito cedo. Com 17 anos bati o recorde mundial e, à medida que fui me destacando, ia percebendo o quanto eu era pioneiro, o quanto eu fui abrindo caminho, para os outros. Fico imaginando como deve ter sido para ela ter sido a primeira mulher em Olimpíada, ter sido a primeira recordista mundial. O caminho é sempre mais difícil para quem está indo primeiro. Se eu achei que o caminho foi difícil para mim, imagino para ela. Sou um grande admirador, eu acho que ela é uma das grandes personalidades da natação e do esporte em geral do Brasil”, reverencia Ricardo Prado, medalha de prata nos 400m medley, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles-1984 e ex-recordista mundial da prova, considerado o maior nadador brasileiro da década de 1980.
“A participação foi tímida, ela não estava à altura das adversárias em 1932. Ficou em vigésimo nos 100m livre, foi desclassificada nos 100m costas e ficou em décimo primeiro lugar nos 200m peito”, informa Renato Cordani.
Enquanto no Brasil eram poucas as mulheres que praticavam esportes, na Europa o cenário era bem diferente.
“Muitas mulheres já competiam e participavam dos Jogos Olímpicos desde 1900. As mulheres já lutavam por sua cidadania em muitos países e isso incluía também a inclusão no esporte”, ressalta a professora Ana Miragaya.
Além da falta de preparação durante a viagem, já que o Itaquicê contava apenas com uma piscina de lazer, inadequada para treinos, Maria Lenk teve outras dificuldades.
"O que valia era o conceito do amadorismo. Eu competi com um uniforme emprestado, que tive de devolver quando as provas acabaram", registra uma matéria sobre ela no jornal Folha de São Paulo.
Curiosamente, 60 anos depois, a história se repetiu, só que, dessa vez, com resultado diferente. Na Olimpíada de Barcelona-1992, o judoca Rogério Sampaio subiu ao pódio para receber a medalha de ouro depois de lutar com um quimono emprestado.
Com uniforme emprestado ou não e independentemente dos resultados, a barreira para a participação das brasileiras nos Jogos Olímpicos fora rompida.
“Maria Lenk abriu a porta para as mulheres que vieram depois. Quebrou preconceitos que havia não apenas com os atletas, mas com as mulheres atletas. Há que se pensar que, naquela época no Brasil, em uma sociedade aristocrática e patriarcal, era uma ousadia uma mulher viajar sozinha, em uma delegação esportiva para uma nação distante”, analisa Alberto Murray.
Ganhando tudo no Rio Tietê
Na volta da Olimpíada, além de participar de inúmeras inaugurações de piscinas nas principais capitais do país ao lado da irmã Sieglinde, Maria Lenk se destacou como o grande nome da “Travessia de São Paulo a Nado”, uma prova com percurso de 5,5km, entre a Ponte da Vila Maria e o Clube Espéria, na zona norte de São Paulo. Maria foi quatro vezes campeã de 1932 a 1935.
“Os torcedores ficavam curiosos com a presença feminina numa prova onde praticamente havia só homens. Queriam ver o que acontecia com uma moça nadando em meio a muitos rapazes. Achavam que ela perderia e eles iriam rir do fraco desempenho das atletas. Mas o que aconteceu foi justamente o contrário. Maria Lenk descrevia que a maior parte dos homens e muitas mulheres que acompanhavam os maridos e namorados a essas provas ficavam surpresas com seu desempenho.
“Ela ‘dava poeira’ em muitos competidores e acabava ganhando a prova para espanto de quase todos”, conta a professora Ana Miragaya.
A partir de 1936, quando Maria mudou-se para o Rio de Janeiro, Sieglinde passou a vencer a competição, que tinha como destaque masculino o nadador João Havelange, que viria a ser presidente da FIFA.
Pioneira no estilo borboleta